Quando fui à livraria, escolhi alguns livros para folhear, sendo que um deles foi esse do Bogle. Ao folheá-lo, li esse primeiro trecho que me impressionou:
“Em uma festa na mansão de um bilionário em Shelter Island, Kurt Vonnegut informa a seu amigo, Joseph Heller, que o anfitrião, administrador de fundos de hedge, ganhou mais dinheiro em um único dia do que Heller ganhou com seu famoso romance Ardil 22 desde sua publicação. Heller responde: “sim, mas tenho algo que ele nunca terá… eu tenho o suficiente”.
Essa passagem é desconcertante, tão desconcertante quanto o gráfico da curva da satisfação, idealizado por Vicki Robin e Joe Dominguez, autores do livro Dinheiro e Vida, o qual também contém o chamado ponto da suficiência como uma das chaves para se alcançar a independência financeira (em breve escreverei um post sobre a tal curva da satisfação). O tema se torna ainda mais atual na medida em que nos encontramos numa sociedade onde ter o suficiente é quase que uma aberração, já que o que mais se vê é a busca do “quanto mais, melhor”. Daí a leitura oportuna desse livro, cuja resenha tenho o prazer de fazer aqui para o estimado leitor do blog Valores Reais.
Informações técnicas
Título: A dose certa – como encontrar o equilíbrio para o dinheiro, os negócios e a vida
Autor: John C. Bogle – tradução de Cristina Yamagami
Número de páginas: 211
Editora: Campus-Elsevier
Faixa de preço: R$ 33 a R$ 60
A segunda constatação que impressiona (a primeira é a do trecho referenciado acima), diz respeito ao próprio autor: John Bogle, autor do livro, foi nada mais nada menos que o fundador do Vanguard, o que quer dizer, em outras palavras, que foi dele a idéia de criar os fundos de índice passivo, cuja idéia “pegou” em nível mundial, alcançando inclusive o Brasil, por meio dos fundos de índices que já abordamos aqui no blog em vezes anteriores, fundos baratos e que apresentam ótimas rentabilidades. Ele escreveu esse livro do alto de seus 79 anos. Isso mesmo. Como ele nasceu em maio de 1929, está prestes a completar 8 décadas de vida, e o livro contém uma série de reflexões acerca do que ele vivenciou em toda a sua vida, principalmente no mercado financeiro e nos negócios.
Na verdade, o livro, além de refletir sua filosofia de investimentos e de negócios, é uma severa crítica à sociedade americana atual. Segundo o autor, valores de outrora estão sendo desprezados, e o conceito de sucesso tem sido subvertido, com inversão total de valores daquilo que deveria governar a mente das pessoas. Em particular, Bogle faz pesadas críticas aos CEOs das grandes empresas americanas, que ganham, entre salários e bônus, literalmente bilhões de dólares, independentemente de estarem prestando ou não bons serviços em seus negócios.
Bogle não poupa críticas aos excessos que dominam o sistema financeiro, e ele sabe do que está falando, pois escreveu o livro em meio à atual crise que atacou os Estados Unidos desde 2007. De acordo com Bogle, a falta de limites não atinge apenas os mercados financeiros, chegando a transgredir também os valores profissionais e inclusive as decisões que as pessoas tomam acerca de suas próprias vidas.
Por isso, o livro está dividido em três partes principais: dinheiro, negócios e vida.
Em dinheiro, Bogle literalmente detona o sistema financeiro atual, e isso é visível pelos títulos dos três capítulos que o compõem, que são assim denominados: “custos demais, valor de menos”, “especulação demais, investimentos de menos”, “complexidade demais, simplicidade de menos”. O autor ataca a indústria de fundos mútuos, onde impera a ganância, e os custos excessivos acabam anulando por completo os benefícios gerados pelo sistema. Como criador de fundos de índice de baixo custo, Bogle sustenta, com argumentos irrefutáveis, os enormes benefícios de procurar não dividir os resultados dos investimentos com instituições financeiras, bem como manter um controle rígido da administração dos custos dos investimentos.
Um capítulo especial é dedicado a mostrar como a especulação corrói o sistema financeiro, subtrai valor da sociedade e gera menores retornos aos investidores. No final das contas, ele nos ensina uma lição simples, mas de tão simples que acabou sendo relegada a segundo plano pela maioria dos investidores: a de que, quando você estiver diante de várias soluções para um problema, possa escolher a mais simples.
Agora veja como são denominados os capítulos da parte de negócios: “números demais, confiança de menos”, “códigos de conduta demais, conduta profissional de menos”, “persuasão demais, responsabilidade e ética de menos”, “administração demais, liderança de menos”. Já dá para perceber quais itens serão atacados, não é mesmo? Apesar de a economia lidar de maneira indissociável com os números, estatísticas, mensurações, quantificações… o autor defende a tese de que os valores essenciais da ética e da confiança estão sendo simplesmente relegados a segundo plano, como subproduto de uma era em que mais vale a representação da realidade por números, do que qualquer outra coisa.
Uma parte curiosa do livro, que está nessa segunda seção, é a pesada crítica que o autor faz a um dos livros que mais gostei de ler, qual seja, o Investindo em ações no longo prazo, do nosso estimado Jeremy Siegel. John Bogle ataca Siegel porque esse acredita que a história do passado se repetiria no futuro, e, segundo o criador do Vanguard, não seria bem assim, já que o único prisma válido para se vislumbrar o futuro seria levar em consideração as fontes de retorno sobre as ações, e não apenas a história passada das ações. Bogle também ataca as simulações de Monte Carlo, também sob o mesmo argumento: tais simulações, ao se basearem nos retornos totais históricos para seus cálculos, ignorariam as fontes desses retornos (confesso que não entendi muito bem o que o autor quis dizer com conhecer as “fontes dos retornos”…).
Bogle critica também o excessivo culto aos números, falando que eles nem sempre são a melhor representação da realidade. O autor defende que os negócios passem a valorizar mais outro aspecto da relação, que é a confiança e outros valores éticos. Também reclama da falta de líderes para gerirem os negócios.
Finalmente, a parte da vida. Os capítulos são: “foco demais nas coisas, foco de menos no comprometimento”, “valores do século XXI demais, valores do século XVIII de menos”, “sucesso” demais, caráter de menos”. Bogle é um ferrenho defensor de que as pessoas desenvolvam valores básicos como família, comunidade, senso de responsabilidade, compartilhamento de boas práticas, ética e virtude. Uma coisa que eu achei extremamente interessante foi o grande valor que o autor dá, e isso até é mencionado expressamente em alguns trechos da obra, nas qualidades intangíveis que uma pessoa deve possuir.
Gostei disso porque faz me lembrar dos valores intangíveis que eu também defendo que uma pessoa deve construir, ao lado de seu patrimônio tangível, como deixei bem claro nesse artigo.
Finalmente, na última parte, o autor discorre sobre o que vem a ser o suficiente, e também conta parte de sua própria história de vida, uma história calcada na frugalidade, no hábito de poupança, na perseverança, e nos investimentos de baixo custo, dentre outros aspectos.
Conclusão
Um dos pontos altos do livro é justamente o contexto em que ele foi produzido: no turbilhão da mais grave crise financeira que atingiu os Estados Unidos desde a década de 30. O autor propõe uma série de reflexões sobre a conduta que as pessoas devem ter, quais valores devem priorizar, e o que devem evitar, a fim de conseguirem produzir e serem mais úteis à sociedade.
Esse não é um livro sobre investimentos. Embora o autor defenda a atenção nos custos, e particularmente discorra sobre os benefícios dos fundos de índices, se você está procurando um livro com dicas sobre como investir, há outros livros mais apropriados para leitura. O próprio Bogle, inclusive, tem um ótimo livro (em inglês) sobre o tema: Common Sense on Mutual Funds.
Entretanto, a virtude desse livro reside justamente na intersecção que Bogle faz entre esse instrumento que se chama dinheiro e a vida pessoal e profissional das pessoas. Ao questionar o atual estado de coisas que anda imperando nas instituições financeiras norte-americanas, com seus excessos e complexidades fúteis e inúteis, Bogle nos alerta para a necessidade de não sermos expectadores passivos dessa ciranda financeira.
E é isso que o livro consegue despertar: que tenhamos senso crítico diante de tudo o que recebemos no âmbito profissional ou pessoal, principalmente do sistema financeiro e do modo como os negócios têm sido conduzidos nos últimos tempos.
Apesar do decepcionante e lamentável estado atual das coisas, Bogle ainda tem esperança de que o futuro seja melhor, e por isso que ele continua ativo, apesar de seus quase 80 anos de vida, e depois inclusive de ter passado por um transplante de coração uma década atrás: ele continua fazendo palestras para empresas e jovens universitários, procurando irradiar nas outras pessoas os valores e o caráter que nortearam a sua própria vida.
Devo dizer que gostei muito do livro, e também da forma como Bogle construiu e está construindo sua carreira e seus negócios. Embora não seja uma auto-biografia, contém boas pinceladas da vida de Bogle, entremeadas com aspectos da sociedade em que vive, e, nesse sentido, a leitura não é só agradável, como flue com bastante leveza e satisfação. Por isso ele leva o selo de recomendação do blog Valores Reais. 😀
É isso aí!
Um grande abraço, e que Deus os abençoe!
Obrigado pela resenha Hotmar!
Estão faltando alguns “Bogles” aqui no Brasil para conscientizar a população sobre investimentos e valores reais!
Grande Abraço!
Concordo, Henrique, um dos poucos “Bogles” que vejo no Brasil é o Mauro Halfeld, ferrenho defensor dos PIBBs e constante anunciador dos cuidados que o investidor deve ter ao evitar altas taxas de administração.
Valeu!
É isso aí!
Um grande abraço, e que Deus os abençoe!
Olá, Guilherme! Excelente artigo! O livro também parece sê-lo, e sua resenha me despertou um grande interesse nele. Antes de mais nada, quero parabenizá-lo por seu blog. Comecei a lê-lo outro dia, achei excelente e pretendo ler todos os artigos que conseguir!
Sobre as “fontes dos retornos”, como eu ainda não li o livro, posso apenas especular baseado no que você escreveu. Será que ele não está se referindo a O QUE as empresas fazem pra gerar os retornos pros seus acionistas? O que uma empresa tem de mais forte e que a diferencia dos concorrentes de seu ramo? Seu Marketing? Sua capacidade de inovar em produtos? Sua rede de distribuição? Esses fatores de administração, e mais importante, sua importância nos negócios das empresas se mantém no presente, ou se tornaram obsoletos por todos os concorrentes já os dominarem? Afinal, o fato de uma empresa ter tido desempenhos excelentes no passado pode não dizer nada em relação ao futuro.
Por exemplo, analistas especulam que a verdadeira grande força da Apple é seu CEO. A menos que o Steve Jobs consiga convencer a todos seus acionistas que quem irá substituí-lo quando ele se aposentar é tão capaz quanto ele de manter a Apple a empresa inovadora e com o potencial de Marketing que possui, com certeza as ações dessa empresa irão desvalorizar horrores quando ele anunciar sua aposentadoria.
Abraços e continue escrevendo! Vou indicar seu blog a vários amigos meus!
Olá, Jeferson, obrigado pelos comentários! Para te ajudar nessa empreitada de leitura de todos os artigos, uma seção que pode lhe ser útil é a página de arquivos – http://valoresreais.com/arquivos/ – onde os posts estão publicados em ordem cronológica.
Quanto “às fontes de retornos”, tem todo o sentido a sua tese, ou seja, a de que o que importa é a análise das atividades empresariais. O exemplo da Apple através do Jobs reforça esse entendimento.
O livro é de leitura excepcional, vc irá gostar bastante, principalmente pela qualidade das idéias que ali são defendidas.
É isso aí!
Um grande abraço, e que Deus os abençoe!
“custos demais, valor de menos”, “especulação demais, investimentos de menos”, “complexidade demais, simplicidade de menos”.
Acredito que em relação à tudo, o Brasil também caminha nesse sentido.
E embora o foco do artigo não seja esse, eu ainda acrescento: depravação demais, valores morais de menos.
Abraços,
Rosana
Perfeito, Rosana!
Gostei muito dos antônimos descritos por você. Esse é o caminho que nosso país, infelizmente, tem percorrido.
Abç