Essa é a segunda parte da resenha do livro O clube do livro: ser leitor – que diferença faz? de Luzia de Maria. A primeira parte pode ser lida aqui.
Capítulo 3. Há mais de vinte anos… – a realização dessa proposta pedagógica e os seus frutos
O livro como um todo é ótimo e prende o leitor do começo ao fim, mas esse capítulo 3 (juntamente com o capítulo seguinte), forma a melhor parte da obra, na minha opinião. Nela, a autora conta sua experiência com a criação do clube do livro, especialmente no ano de 1987, numa escola pública de Niterói-RJ, onde os alunos da matéria de língua portuguesa, do segundo ano do antigo 2º grau, foram convidados a participar dessa nova proposta pedagógica. Ao invés de serem dadas aulas de morfologia, sintaxe, estilos literários etc., a autora resolveu inovar: naquele ano os alunos fariam leituras dos livros, previamente selecionados pela professora – juntamente com algumas obras sugeridas pelos próprios alunos, mas filtrados pela autora -, extraídos da mais alta literatura nacional e estrangeira, e também precisavam comentá-los e discuti-los em classe, junto aos demais colegas.
Paralelamente, a autora se esforçava para trazer até a escola autores dos próprios livros que os alunos estavam lendo, como João Ubaldo Ribeiro, José J. Veiga etc. Havia a necessidade de leitura de 5 livros por bimestre, e não havia limite máximo. No entanto, a professora dava pistas de que, quanto maior a quantidade de livros, maior seria a nota, assim uns 10 livros lidos no bimestre equivaleriam a uma nota 10. Mas não apenas lidos, mas também comentados e discutidos em classe. Os resultados foram surpreendentes até para a própria professora, já que muitos devoraram cinquenta, sessenta e até setenta títulos, em apenas um ano! E livros da literatura da maior qualidade, como Machado de Assis, Rachel de Queiroz, João Ubaldo Ribeiro…
São colacionados, nesse terceiro capítulo, os depoimentos de vários ex-alunos daquele ano de 1987, todos falando da importância do clube da leitura instituído pela professora naquele remoto ano, sendo que todos eles conquistaram sucesso tanto na vida pessoal quanto na profissional: muitos avançaram nos estudos no meio acadêmico fazendo mestrados, doutorados, bem como ocuparam – na verdade ocupam – posições de destaque como engenheiros, dentistas, advogados, servidores públicos etc.
Capítulo 4. Machado de Assis – A genialidade construída pela leitura
Esse é outro capítulo muito saboroso do livro, onde a autora descreve o maior escritor brasileiro de todos os tempos por uma perspectiva inovadora: o Machado de Assis construído a partir da leitura, da alta leitura, tanto em qualidade quanto em quantidade. Ele é a figura que comprova o que foi afirmado na primeira parte dessa resenha, quando se disse que a capacidade intelectual depende mais das experiências do meio em que se vive do que da herança genética.
Machado de Assis foi uma pessoa que pode se considerar de fato um gênio, que venceu na vida pelo esforço, pelo aprendizado e pela perseverança, superando todo e qualquer tipo de obstáculo que pudesse surgir. Ele nasceu mulato, pobre e não freqüentou o ensino regular – supõe-se que tenha estudado somente até a terceira ou quarta série – além de ser gago e sofrer de epilepsia. Mas então como é que uma pessoa sem instrução regular, e com todo o tipo de barreira que se possa imaginar, consegue se tornar um dos maiores gênios da literatura universal, segundo a opinião da unanimidade dos especialistas da área? Luzia de Maria nos dá pistas, e elas passam necessariamente pelo ambiente que Machado encontrou na livraria de Paula Brito, onde pôde manter contato direto com as melhores fontes da literatura da época, inclusive do que se passava na Europa e nos Estados Unidos. Houve, além disso, um aprendizado social que lhe abriu muitas portas para que pudesse exercer o ofício da escrita nos jornais e outros meios de comunicação da época, de modo que, aos 29 anos, já era considerado uma autoridade literária de peso entre seus pares – isso porque começou bem cedo (seu primeiro poema foi publicado quando ele tinha quinze anos).
Machado lia tudo, e lia todos, e a leitura foi uma das molas propulsoras para que ele aprimorasse tão bem a arte da escrita.
O interessante dessa última parte do livro é o ponto de intersecção que consigo vislumbrar com o livro da Carol Dweck, Por que algumas pessoas fazem sucesso, e outras não, no sentido de que Machado de Assis desenvolveu um código mental construtivo – altamente construtivo, diria eu – em sua vida. Observe essa passagem do livro de Luzia (p. 316):
“O que eu pretendo é justamente jogar por terra essa imagem de um ‘dom’ com que o menino pobre teria sido aquinhoado, questionar essa gratuidade de uma premiação inexplicável do destino.”
E Luzia de Maria consegue, com argumentos bastante convincentes, provar que, na construção do código mental de Machado de Assis, tiveram importância enorme tanto a interação social a que foi submetido quando a rede de oportunidades que foram aparecendo no meio do caminho. Assim, a autora questiona: o ambiente da livraria de Paula Brito era mais desafiante para Machado de Assis do que uma simples sala de aula? Provavelmente sim. Além disso, ele parecia ter uma vontade de ir sempre além dos limites, o que, de certo, contribuiu para estimular ainda mais sua inteligência e perspicaz senso da realidade.
O código mental construtivo na personalidade de Machado de Assis nos é revelado nesse seguinte trecho (p. 322):
“Gênio, sim. Mas não por ter sido agraciado pela natureza com uma habilidade lingüística inata, e sim por ter convivido assiduamente com as grandes obras literárias que lhe chegavam às mãos e, ao mesmo tempo, ter exercitado de forma permanente a escrita”.
O que prova que o talento não foi inato, mas sim construído e aprimorado ao longo do tempo.
Conclusão
Trata-se de um livro com enorme potencial para fazer você tomar gosto pela literatura, e digo mais, pela literatura de alta qualidade, dos nossos grandes mestres. Embasado em sólidas pesquisas científicas, e baseado também em sua própria experiência pessoal, seja como fundadora do clube do livro nos anos 80, seja vivenciando a experiência de fazer suas filhas e netas tomarem o gosto pela leitura, Luzia de Maria faz uma viagem pela literatura brasileira e universal, mostrando os benefícios evidentes da leitura para a formação de qualquer ser humano que se preze. Toda a sua argumentação é fundamentada e desenvolvida não na pedagogia, mas sim naqueles que ela considera os mais excepcionais leitores: os escritores: Bernhard Schlink, Nélida Piñon, Moacyr Scliar, Mário Vargas Llosa, Italo Calvino, Todorov, Rosa Montero, Orhan Pamuk, Amós Oz, Carlos Fuentes e outros.
Mais do que isso, o livro é um convite para que professores do ensino fundamental e médio reflitam sobre suas metodologias tradicionais de incentivo à leitura, e passem a ver na leitura um instrumento de transformação dos alunos.
Como não poderia deixar de ser, fiquei extremamente satisfeito ao concluir a leitura, pois ela, além de tudo isso, forneceu mais algumas idéias para outros temas que pretendo tratar aqui no blog em futuros artigos.
É uma leitura que coloco no mesmo patamar de outros livros de qualidade superior, como esse e esse, pela forma inovadora com que trata o tema a que se propõe. Em se tratando de uma autora brasileira, a obra deve ser valorizada ainda mais, pois é um prêmio que incentiva e estimula quem já tem na leitura um hábito arraigado em seu cotidiano.
Parabéns à Luzia de Maria por ter nos presenteado com essa obra-prima, esse monumento de dedicação à leitura.
É isso aí!
Um grande abraço, e que Deus os abençoe!
GOSTEI DO TRABALHO DE VOCÊS, ESTE LIVRO É FONTE PRIMORDIAL PARA OS EDUCADORES QUE QUEREM ESTAR ATUALIZADOS.
PARABÉNS!
Obrigado, Umbelina!
É isso aí!
Um grande abraço, e que Deus os abençoe!
Acho que até aqui essa foi a resenha mais apaixonada que já li no seu blog, o que me motiva a incluir esse livro na minha lista de leitura (sem falar que moro em Niterói desde a minha infância, então esse acaba sendo um atrativo a mais).
Inclusive a sua resenha me levou a pensar em algo que talvez fuja do escopo do seu texto: a participação em um grupo de mastermind que traga esse tipo de leitura mais deliberada (como o que Napoleon Hill sugere no começo de Quem Pensa Enriquece). Você tem alguma experiência com esse tipo de grupo de leitura?
Oi Henrí!
Muito obrigado! Realmente, toda vez que eu leio essa resenha, não há como não ficar empolgado e instigado a ler o livro.
E no seu caso, o fato de morar em Niterói funciona como um reforço e um incentivo extra a ler o livro.
Sobre o grupo de mastermind, eu nunca participei desse tipo de reunião, mas conheço pessoas que participam, e dizem que é excelente.
Além dos evidentes benefícios da leitura, esses grupos ainda reforçam a convivência social entre amigos, uma convivência no mundo real mesmo. Ótima ideia a sua.
Talvez o mais difícil seja encontrar pessoas que queiram também participar. Talvez em bibliotecas se consiga encontrá-las.
Acho que a parte da convivência é justamente o maior valor que esses grupos oferecem. Até considerei fazer algo assim numa biblioteca aqui perto de casa, mas vi que seria um tanto complicado. Uma outra alternativa, talvez com mais chances de dar certo, seria montar grupos a partir de sites como o Meetup.
Verdade, Henrí, a convivência é a grande sacada dos grupos.
Não sabia desse Meetup, vou averiguar a respeito.
Abraços!