É possível uma família com duas crianças pequenas dispensar o segundo carro da garagem?
O que era um tabu antigamente, hoje em dia, com a oferta de apps de transporte urbano nas grandes cidades, surgimento de alternativas para o uso do carro, e uma melhora da gestão do orçamento doméstico, além, é claro, da própria conscientização financeira dos consumidores, passou a ser uma ideia factível. E a pandemia veio para acelerar o processo.
Veja o depoimento do leitor Marco:
“Devido à crise, minha família passou por uma grande reestruturação financeira.
Para enxugar gastos, otimizar o tempo gasto no trânsito, e principalmente fazer sobrar mais dinheiro no orçamento doméstico, chegamos à conclusão de que não era preciso o segundo carro.
Eu e minha esposa trabalhamos, temos dois filhos pequenos em idade escolar, e resolvemos fazer um teste: ficar 3 meses andando praticamente só com um carro: um cônjuge usava o carro, enquanto outro cônjuge usava os apps de transporte urbano. Aqui na nossa cidade (Belo Horizonte), em virtude do bairro onde moramos e concentramos nossas principais atividades, víamos que era um desafio passível de ser enfrentado.
Descontados os eventuais desconfortos de não dirigir o próprio carro, que na verdade não significava abdicar totalmente de ambos os dois carros da família, mas apenas de um veículo, concluímos pela viabilidade da mudança, o que foi reforçado com a pandemia do coronavírus, já que agora eu estou no home office.
O ganho financeiro foi fantástico: menos gastos com combustível, menos gastos com estacionamentos, menos gastos com manutenção de veículo, sem gastos com IPVA, sem gastos com seguro, sem gastos com licenciamento e eventuais multas de trânsito, sem gastos com manutenção preventiva e revisão anual.
Na ponta do lápis, a economia anual está sendo de mais de R$ 10 mil, ou cerca de R$ 850 por mês. O orçamento doméstico nunca esteve tão bem, obrigado. A dúvida agora é o que fazer com o dinheiro que está sobrando todo final de mês……rsrsrrs….”
Carro: realidade brasileira vs. zona de conforto
Uma das maiores dificuldades que os leitores apontam, para não conseguirem viver totalmente sem carro, é a realidade brasileira em muitas cidades, marcada por sofríveis condições de mobilidade urbana.
E por sofríveis condições de mobilidade urbana entenda-se não apenas a precariedade dos sistemas de transporte coletivo e/ou ausência de apps de transporte urbano (já que nem todos são atendidos por ele).
Falo também do próprio planejamento urbano de certas cidades, que parecem terem sido concebidas para tornar os pedestres inimigos da cidade.
Pense, por exemplo, no caso de Brasília: é uma cidade em que você depende do carro para se deslocar para praticamente qualquer lugar. Não é exatamente um modelo de cidade que te convida a largar o carro assim tão facilmente.
Porém, ainda que a realidade da sua cidade seja, em tese, apta para fazer te convidar a abandonar o segundo carro da família – suponhamos que você more num bairro onde consiga fazer muitas coisas a pé, como ir no trabalho, mercado, academia, farmácia e levar as crianças para a escola -, aí entra o crônico problema da zona de conforto proporcionada pela propriedade de um veículo.
Somos seres acostumados com o status quo, com a manutenção das vantagens anteriormente conquistadas, e é difícil assimilar novos padrões de conduta.
Ou seja, mesmo que você faça mais de 90% de seus deslocamentos a pé, seja por morar perto do trabalho, seja por morar num bairro de excelente infraestrutura onde todos os principais serviços sejam alcançáveis a pé em questão de minutos, pode ser muito difícil te convencer a largar o segundo carro, sob o argumento de que ele faz muita falta nos 10% restantes.
Não se pode negar: o carro é, por definição, um item destinado a proporcionar, além de facilidade nos deslocamentos, conforto, conforto esse que é muito bem explorado pelas propagandas de veículos, que instigam você a pensar com as emoções ao invés das razões, e a consequência normalmente é você fazer trocas de carros a cada 3 anos, pensando sempre em dar um upgrade no seu conforto pessoal, afinal de contas, você “merece”.
A mudança de paradigmas: conscientização financeira e objetivos de longo prazo
Porém, nosso mundo passa por constantes e rápidas evoluções, não só externamente, no mundo dos fatos, mas também internamente, nos nossos modos de pensar e refletir sobre as situações que vivenciamos no dia a dia.
Quer queira, quer não, a conscientização e a educação financeiras têm chegado a um número cada vez maior de pessoas, seja através das redes sociais, onde existe um forte nicho de mercado onde youtubers que falam de finanças atingem um público na casa dos milhões de inscritos, seja através de blogs como esse, que difundem a cultura da educação financeira e a importância de economizar visando o longo prazo.
É justamente dentro desse contexto de rápidas e profundas mudanças que temos assistido a uma verdadeira quebra de paradigmas, outrora praticamente considerados dogmas, que começam a ser mudados em muitos lares brasileiros.
E o exemplo do leitor Marco é emblemático dessa mudança, desses novos tempos que estamos vivenciando: a possibilidade de abandonar o segundo carro na garagem da família.
Observe que o sonho da classe média típica no Brasil, principalmente da classe média alta, ainda consiste naquele combo formado não apenas por casa própria + veículo na garagem, mas sim por casa própria + dois veículos na garagem.
Porém, mesmo famílias que vivem na classe média baixa buscam essa dupla vaga de garagem preenchida. Motivos não faltam: status mais que necessidade, ostentação mais do que sobriedade, exibição de símbolo de riqueza ao invés de viver em discrição com frugalidade.
Contudo, paga-se um alto preço por essa comodidade, e esse alto preço é cobrado mensalmente, na forma de inúmeras despesas que, se já ocupam uma parcela considerável do orçamento doméstico se só se referirem a um carro apenas, dobram de incômodo ao se multiplicar o valor por dois (carros).
Quem tem dois carros…
- … paga dois IPVAs por ano;
- … paga dois seguros por ano;
- … precisa encher dois tanques de combustível;
- … paga duas revisões anuais na concessionária/oficina;
- … paga dois estacionamentos;
- … precisa morar num prédio ou casa que tenha no mínimo duas vagas de garagem, e preferencialmente paralelas (soltas), pois, se tiver somente uma vaga do tipo “vagão” (um carro atrás do outro), ainda corre o risco de gastar o dobro de tempo manobrando para sair da garagem.
Reflexões que se impõem
A questão que se coloca, então, não é aquela, considerada por muitos radical demais, de abdicar dos dois carros de uma vez só.
A questão é menos drástica: não é o caso de vender o segundo carro, e passar a viver somente com um carro?
Não é uma decisão fácil tampouco elementar, mas hoje em dia, com os custos de manutenção cada vez mais caros dos carros no Brasil – fora os próprios preços de venda dos carros, que não param de aumentar a cada virada de ano -, será que já não é mais hora de dar um basta nesse item que só corrói o orçamento doméstico?
E nesse “novo normal” a se instalar na pós-pandemia, será que efetivamente dois carros na garagem continuam sendo assim tão necessários?
É óbvio que toda mudança tem seus custos, tem seus ônus, tem suas desvantagens, e, no caso da venda do segundo carro da família, a desvantagem óbvia é a eliminação do conforto que o segundo carro proporciona.
Porém, se você estiver vivendo uma situação financeira “no limite”, onde mal esteja conseguindo fechar as contas no final do mês, onde sobra menos de 10% de seu salário para economizar, onde você tem que recorrer a parcelamentos de compras no cartão de crédito para ter dinheiro para pagar as contas que estão vencendo, onde folga financeira é uma palavra que não existe em seu vocabulário financeiro, então… é hora de reavaliar a manutenção do segundo carro na família. Lembre-se: não estou falando de cortar os dois carros, mas sim apenas o segundo carro.
Conclusão

Sabe qual é uma das coisas mais difíceis do ser humano, de qualquer ser humano?
É abrir mão de um benefício imediato em prol da aquisição de um benefício futuro.
É renunciar a uma vantagem presente, efêmera, temporária, em troca de um benefício duradouro, permanente.
É por isso que é tão difícil acordar quando se está com sono.
É por isso que é tão difícil abrir mão do chocolate quando se está com muita fome.
É por isso que é tão difícil sair do sofá, deixar de assistir aquele programa do Netflix, pra fazer alguma coisa mais útil.
É por isso que é tão difícil sair das redes sociais que viciam a mente, ao invés de fazer um trabalho significativo que preencha seu tempo.
É por isso que é tão difícil abrir mão do segundo carro em troca de um futuro com mais folga financeira e mais liberdade material.
Para muitas pessoas, só a ideia de abandonar o segundo carro faz ela nem continuar no assunto. Estão tão arraigadas com o segundo carro, tão acostumadas com ele, que nem mesmo consideram uma segunda alternativa, mesmo que, objetivamente, tal ideia de viver com apenas um veículo seja plenamente viável.
Porém, é preciso pensar fora da caixa, como fez o leitor Marco, e considerar se isso faz sentido para você, dentro de suas específicas circunstâncias.
E muitas vezes só se consegue visualizar os prós e contras dessa alternativa quando se colocam no papel, a olhos vistos, os benefícios de não se ter um segundo carro, benefícios esses não apenas financeiros, proporcionados pelo ganho de dinheiro ao se evitar tantos gastos mensais e anuais, mas também benefícios de ordem emocional e de liberdade – afinal, um carro não deixa de ser uma escravidão, já que ele sempre irá trazer dependência de gastos associados, e fonte de preocupações com a manutenção, preservação e segurança desse bem de consumo.
E você, já avaliou a possibilidade de sua família ficar com apenas um carro? Por quê decidiu manter? Por quê decidiu não manter?
Olá mais um artigo educativo. Moro em Brasília e fizemos a opção por um só carro fazem três anos. Nosso orçamento melhorou, podemos eliminar dívidas e investir bem mais. Além da questão financeira, o relacionamento também melhorou. Conversarmos e ponderamos mais nossas escolhas e rotinas diárias buscando otimizar o uso do veículo. E sempre podemos contar com o Uber. Vale a pena fazer a experiência
Excelente iniciativa, Moisés, parabéns!
não quero ser dono da verdade (e não sou), mas não compreendi a informação de que Brasília é uma cidade em que você depende de carro para ir para praticamente todo lugar.
Eu vivi em Brasília durante 8 anos. Morei no Sudoeste, Guará 2 e Águas Claras.
Apesar de eu ter carro, usava ônibus e metrô para ir trabalhar e fazer a maioria das tarefas diárias.
No Sudoeste não havia metrô, mas o ônibus atendia o suficiente para ir trabalhar e voltar do trabalho.
No caso de Brasília, eu vejo muita é acomodação das pessoas em usar o carro, já que há estacionamentos para todo canto.
Ainda assim, as pessoas insistem em parar/estacionar o carro em local proibido. A pessoa não quer simplesmente sair de carro de casa e ir na padaria de carro. Ela quer parar o carro em frente a padaria.
Em Brasília, andar de metrô e principalmente ônibus, é visto como coisa de gente inferior (isso é notório). Assim, a maioria não abre mão do carro. Conheço várias pessoas (colegas de trabalho que moravam na mesma localidade que a minha) que teriam como ir trabalhar de ônibus ou metrô sem problema algum. Mas, elas preferem ir de carro.
O pior é que ainda criticam quem vai de ônibus ou metrô. Não param nem para pensar de que o fato de uma pessoa ir de metrô é menos um carro na rua.
Ótimo depoimento, gil!
Ler esse texto me reforça a ideia de que existe outro Brasil. É um dentro do outro.
Dois carros? Ainda mais em 2020 com a economia indo de mal a pior? Nunca tive nem mesmo um, e do meu círculo de contatos, poucos dirigem e têm só um carro.
Ando por todos os lados de ônibus. Existe linha pra praticamente todos os bairros. Como alternativa, tem o 99 e o Uber.
Verdade, Paulo.
Aqui funciona otimamente ter um único carro para duas pessoas adultas, cada uma com suas atividades. Não há crianças para levar para a escola, sei que isso torna a situação toda mais fácil.
Moro em SPaulo, numa localização boa, que me permite usar varios modais de transporte: faço muitas coisas a pé, usava metrô antes da pandemia., e Uber.
Então vamos fazendo assim, o carro vai sendo usado por quem precisa mais, e se a outra pessoa tbem precisar, chama um Uber. Pra mim, esses aplicativos de transporte são inclusive mais confortáveis que o carro proprio, pela facilidade em não ter que procurar onde estacionar. Nem cogito em ter um segundo carro. O bolso e o meio ambiente agradecem.
Ótimo depoimento, Vânia!
Uma reflexão interessante, e que escancara o real motivo por trás de ter um segundo carro, é o seguinte:
Se o segundo carro é mesmo essencial, por que não ter então um carro bastante antigo e barato? No limite, um Fusca, por exemplo.
O carro é barato, então o custo de oportunidade é bem menor.
Seguro? Já me disseram que não se faz seguro para carro tão antigo assim, mas espero que exista ao menos um seguro para terceiros, que para mim é o mínimo necessário.
IPVA? Nem paga mais.
Manutenção? Barata e qualquer mecânico consegue fazer.
Multas? É um risco, e você precisa avaliar o seu comportamento no trânsito — no meu caso, nem lembro quando foi a última multa que tomei, então não me preocupo com isso.
Combustível é custo variável (se não tiver com o combustível desse carro, teria com o outro, ou com o Uber), e se você se dispuser a aprender, existem técnicas para economizar MUITO nesse quesito.
Estacionamento e garagem, não tem como fugir muito, mas vale notar que nem sempre isso é problema (por exemplo, estaciono de graça no trabalho, e minha casa já tem espaço para dois carros, se não tivesse o segundo simplesmente ficaria vazio ali).
Claro que um carro com esse perfil é inseguro, mas proponho isso como segundo carro mesmo, para andar na cidade, em baixa velocidade, de maneira que eventuais acidentes não devem ser graves.
É uma reflexão interessante para você pensar se o problema não é o medo que os outros vejam você andando de Fusca. Admito que eu mesmo ainda não cheguei nesse nível de evolução da educação financeira, embora pelo menos tenha trocado um carro de segmento mais alto, esportivo (de verdade, não só adesivado), por um carro popular (mas novo) — o carro “principal” da família, para viagens, é o da minha esposa. Pelo menos pretendo fazer gastar o carro, trocando-o só após usá-lo por uns 10 anos. Quem sabe até lá esteja evoluído o suficiente e decida apenas vendê-lo, ao invés de trocá-lo.
Ótimo depoimento, Swine!
Sem dúvida é uma grande questão essa a da mudança de hábitos e comportamentos.
Abraços!
Eu me desfiz do meu carro ano passado (em novembro) eu reparei que estava usando o veículo praticamente para ir para o trabalho e para a academia (que ficava no caminho), então troquei a academia para uma perto da minha casa e comecei a utilizar o fretado da empresa e olha, a economia é impressionante, além do valor do carro (e de poder realocar o valor que eu guardava mensalmente planejando a troca que eu fazia em média a cada 5 anos) tem todos os gastos de seguro, imposto, manutenção, estacionamento, combustível, lavagens…. a pandemia e o trabalho em home office facilitaram ainda mais a mudança e como meu companheiro tem o carro dele praticamente não tive alterações no meu dia a dia.
Realmente não é muito fácil fazer uma mudança desse porte, eu tive carro desde os meus 20 anos (estou com 37 agora) mas no fundo é uma questão de ajustes de prioridades, Agora andamos questionando nossa moradia, moramos num apartamento na região central da cidade (financiado pela CEF que deve ser quitado em 2 anos) caso o home office se mantenha, estamos avaliando a mudança para uma casa numa região mais afastada, mas com pátio e um valor menor que o apto (considerando aqui também IPTU, condomínio e manutenções).
Esse tipo de post é muito importante para nos tirar do piloto automático e fazer pensar no que realmente é importante para nós.
Muito obrigada pelas reflexões.
Abraços
Excelente depoimento, Emile!
Pessoal estou começando um projeto de resumo de livro de investimentos e o apoio de voces é fundamental. Quem puder dar uma olhadinha é só acessar https://bri-livros.blogspot.com/
Há pouco tempo passei a ter apenas um carro, mas já deu pra sentir a diferença. Em casa sou eu, esposa e dois filhos maiores.Durante a pandemia, o segundo carro ficava parado durante dias a ponto de eu ter que trocar a bateria por problema em ficar parado. Estava pensando, depois da pandemia comprar outro segundo carro, mas desisti.Vejo que no meu caso não há a mínima necessidade.Sempre saio com minha esposa e quando meus filhos precisam, fazemos uma programação prévia. Está dando super certo. Com essa economia, já dará pra viajar nas férias com toda a família. Abraços a todos.
Excelente depoimento, Augusto!
Realmente, a pandemia está fazendo várias famílias fazerem uma revisão de gastos e, consequentemente, indo em direção a um uso mais otimizado dos recursos financeiros.
Abraços!