Um dos piores sintomas da dificuldade de lidar com as finanças consiste na síndrome de viver de contracheque em contracheque – ou, como dizem os americanos, living from paycheck to paycheck.
Essa síndrome é caracterizada não só pela dificuldade de não fazer sobrar dinheiro no final do mês, mas principalmente pelo constante uso do salário para pagar as contas do mês anterior.
Faça um pequeno teste a fim de descobrir se você se encaixa nessa categoria de pessoas: abra o extrato da conta-corrente onde é depositado seu salário. Agora, verifique para onde foi o dinheiro do seu salário. Qual foi o destino dele?
Se ele foi destinado para pagar as contas do mês anterior – faturas de cartão de crédito, despesas fixas recorrentes (condomínio, Internet, escola, academia etc.) – e você depende do próximo salário para pagar as despesas que ocorrerem durante esse mês, isso não é um bom sinal, pois significa que ainda você vive de salário em salário, e essa não é, definitivamente, uma sensação boa.
Nesse contexto, a leitora Glau relatou, em comentários ao último texto:
“Eu particularmente sinto que o cartão de crédito é uma “bengala” acho muito difícil deixar de usar, parece que se usar no débito não vou ter dinheiro pra tudo, mas nunca deixo de controlar e pagar a fatura total, ou seja, vai ter dinheiro pra tudo…
Ainda não descobri como mudar isso na minha cabeça. Acho ruim porque no final das contas estou sempre pagando contas do mês anterior (sem destaque no original)”.
Assim como a Glau, muitos outros leitores relatam dificuldades em quebrar o círculo vicioso de depender sempre do próximo salário para pagar as contas do mês atual – usando dinheiro novo para pagar despesas velhas.
A pergunta que se coloca, portanto, é: há algum meio de romper esse círculo vicioso? Há algum meio de “libertar” o salário de ter que ser usado para pagar as despesas e dívidas pretéritas?
É o que mostraremos no texto de hoje. Acompanhem!
A estratégia
Existe uma estratégia que pode mudar tudo isso, não só na mentalidade da Glau, mas também na de todos os demais leitores que queiram pôr fim ao ciclo vicioso de viver de salário em salário e principalmente queiram pôr fim à dependência eterna, quase vitalícia, de terem necessariamente que esperar o próximo salário cair na conta para poderem pagar suas despesas correntes.
Embora já tenhamos – eu e os leitores – abordado esse assunto em épocas passadas, como no ano de 2016 e até no ano de 2014, tal abordagem foi feita de modo apenas lateral e periférico. Hoje iremos detalhar com mais profundidade essa estratégia, com um texto específico e centralizado no assunto.
Tal estratégia consiste, resumidamente, na criação de um buffer de investimentos, isto é, na criação de uma reserva de dinheiro que é abastecida previamente com dinheiro envelhecido, e não com o dinheiro novo que ainda está por vir, quando do recebimento do próximo salário.
Tal reserva de dinheiro pode ser uma camada da reserva de emergências, mas destacada (isto é, separada) da própria reserva de emergências, utilizada exclusivamente para lidar com as despesas do mês anterior – uma espécie de “capital de giro” que não precisa, para ser alimentada, dos recursos financeiros do salário do mês corrente.
Ela tem como pilar a regra nº 4 do sistema YNAB de controle de orçamento doméstico: fazer o dinheiro envelhecer, conforme explicamos em um artigo escrito em 2016:
Quem vive “com a corda no pescoço”, não consegue administrar suas despesas, e gasta mais do que ganha, não consegue fazer o dinheiro sobrar no final do mês. Em outros termos, quando recebe o salário de, digamos, R$ 2 mil no começo do mês, esse salário já é automaticamente consumido para pagar todas as contas que se vencem nos dias seguintes: gasta R$ 1 mil para pagar as contas fixas mensais (luz, condomínio, telefone etc.), gasta mais R$ 1 mil com a fatura do cartão de crédito, e, com o dinheiro zerado já no dia 5, vai pagando no cartão todas as demais despesas do mês, torcendo pra chegar logo o próximo dia de pagamento de salário.
Por outro lado, quem segue os princípios de um bom planejamento financeiro, como os descritos acima, segue um caminho diametralmente oposto. No primeiro mês, recebe R$ 2 mil e gasta R$ 1,7 mil. Sobram R$ 300. No segundo mês, recebe R$ 2 mil, e gasta R$ 1,4 mil. Sobram mais R$ 600. No terceiro mês, recebe R$ 2 mil, e gasta R$ 1,1 mil. Sobram mais R$ 900. No quarto mês, recebe R$ 2 mil, mas percebe que as sobras dos meses anteriores já somam R$ 1,8 mil, para despesas de R$ 1,1 mil. Ele para de viver de salário em salário. Sobra um salário inteirinho de R$ 2 mil para investir.
Essa é a beleza da quarta regra: você paga as despesas do mês corrente com o dinheiro envelhecido dos meses anteriores. E, quanto mais você envelhecer seu dinheiro, mais preparado você estará para sua aposentadoria financeira. Envelhecer os ativos, fazê-los gastarem, ao invés de gastá-los, é um dos segredos para se alcançar a tão sonhada independência financeira.
Eu recomendo que você releia o segundo parágrafo da citação acima (até fixar bem o conceito), que contém um exemplo prático de como você pode criar esse buffer caso receba um salário fixo todo mês (que se aplica a assalariados, como servidores públicos e empregados sob o regime celetista, mas útil a todos os demais profissionais que tenham condições de calcular uma renda média mensal).
A ideia nuclear que está subjacente à estratégia consiste em acumular sobras mensais que, somadas, atinjam o patamar equivalente a 100% da sua renda líquida média mensal (no exemplo acima, do salário de R$ 2 mil, foram necessários 4 meses de trabalho para se chegar a uma reserva de R$ 2 mil).
Mas aí alguém poderia argumentar: “mas as sobras do meu salário eu uso para investir em ações, fundos de investimentos… como fazer?”
Há algumas alternativas para compatibilizar os investimentos de longo prazo com a formação desse buffer (que é, por natureza, de curto prazo), e uma das mais viáveis – se realmente te incomodar o fato de sempre ter que utilizar dinheiro novo para pagar contas velhas – consiste em priorizar, ao menos temporariamente, a constituição desse buffer.
É claro que, até chegar lá, você precisa adotar dois comportamentos financeiros prévios essenciais para que o plano dê certo:
- Gastar menos do que ganha de forma consistente: ou seja, o clássico “fazer sobrar dinheiro no final do mês”;
- Ter um controle mensal de seu orçamento doméstico, a fim de estabelecer em quanto tempo você irá conseguir cumprir o objetivo.
O buffer e a reserva de emergência
E a reserva de emergências? Ela não pode ser utilizada para essa finalidade? Afinal de contas, se eu já tiver, como no exemplo dado acima, R$ 10 mil alocados num fundo DI com baixa taxa de administração, o que é 5x o valor do salário líquido, eu poderia destacar R$ 2 mil desse montante para pagar as despesas do dia a dia.
Eu penso que não, que a reserva de emergências não deve ser utilizada para pagar as despesas planejáveis (recorrentes fixas e recorrentes variáveis) do dia a dia.
E isso por um motivo bastante simples: incoerência de propósitos. Observe que a reserva de emergências serve para ser utilizada em casos de… emergências, como o próprio nome diz – ou para específicas oportunidades, como defendem alguns blogueiros da finansfera – p.ex., queda abrupta da Bolsa de Valores.
Já o buffer serve para pagar as despesas correntes, isto é, as despesas já previsíveis e planejáveis, além de dar uma destinação mais poderosa ao dinheiro do salário que virá.
Não é porque eu tenho um dinheiro “dando sopa” num dado investimento, ou melhor dizendo, não é porque eu tenho patrimônio suficiente para dar conta das despesas correntes, do dia a dia, que eu deva sair por aí desalocando dinheiro de uma área para socorrer outra área financeira da minha vida.
Lembre-se: cada real investido deve ter uma destinação específica, apropriada para determinado objetivo não financeiro. Os reais acumulados na reserva de emergências/oportunidades servem para cobrir situações imprevistas, e não situações previstas. Os reais acumulados na sua conta na corretora, mantidos em ações, ou em PGBL/VGBL, servem para construção de aposentadoria a longo prazo. Os reais acumulados em fundos imobiliários servem para geração de um fluxo de caixa mensal. E assim por diante.
Conclusão

Imagine se você pudesse receber seu próximo salário, e investi-lo integralmente. 100%. E as contas? E as faturas do cartão de crédito? E o condomínio? E a empregada/diarista? Tudo seria pago com dinheiro velho, oriundo desse buffer.
Esses acontecimentos não precisam ficar só na imaginação. Eles são mais tangíveis, mais reais, do que você pensa. Basta ter disciplina financeira e adotar as estratégias de controle adequadas, explicadas acima, que um dia você também chega lá.
Em comentários escritos em um artigo publicado em fevereiro de 2016, o leitor Lindolfo Rodrigues disse que usava a técnica do buffer, aprendida com o YNAB, e que a técnica era muito poderosa…
“…principalmente porque o salário fica rendendo no mínimo 1 mês. Meu objetivo é pular mais um mês, até que o salário desse mês seja para pagar as contas de daqui 6 meses. No decorrer do mês você precisa fazer alguns ajustes de orçamento, mas tem funcionado muito bem comigo.”
Mas sabe o que é o mais interessante dessa estratégia de não usar dinheiro novo para pagar contas velhas? É que ele lhe dá um gostinho do que vem a ser a independência financeira. Independência financeira você conquista quando seus rendimentos oriundos de investimentos bancam, a cada mês, todas as suas despesas.
Não usar seu salário do mês, e mais do que isso, não usar sequer um centavo de seu salário, para pagar as contas vencidas e as que vão vencer no decorrer do mês, já é um pedaço desse caminho que você estará pavimentando rumo a esse objetivo maior de longo prazo, e certamente te incentivará a prosseguir nessa jornada, cada vez mais confiante de que está no caminho certo do controle cada vez melhor de seu dinheiro. 😉
Guilherme,
Interessante a estratégia de buffer – sem dúvida é algo útil para muitas pessoas, pois o exemplo da Glau é bem comum no Brasil.
Boa semana!
Verdade, Rosana, é uma técnica a mais para incrementar o controle do orçamento doméstico.
Bom final de semana!
MUITO LEGAL, NUNCA TINHA PENSADO DESSA FORMA.
FAREI ISSO !!
Valeu, Alexssandra!
Aproveitando o final do ano, para quem deseja dar um pontapé inicial e já começar com um salário envelhecido na conta é utilizar o 13° e o adicional de férias. Claro que essa dica se aplica mais a funcionários públicos e quem é empregado em alguma empresa.
Excelente postagem!
Abraços!
Black Mamba
Excelente dica, Black Mamba!
Gostei muito!
Obrigado, Laura!
Olá Guilherme!
Estratégia interessante em dividir o dinheiro das “reservas”, para quem prefere alocá-lo separadamente.
Uma sugestão é deixar o buffer em algum fundo de seu banco preferido, por onde as contas são pagas. Não estamos procurando rendimentos aqui, e mesmo que seu banco cobre uma taxa de adm alta, não vai fazer quase nenhuma diferença uma vez que o dinheiro é para curtíssimo prazo.
Já a reserva de emergência, apesar da liquidez, merece ser melhor tratada. Poderia-se usar um dos fundos Selic taxas zero de corretoras como a Pi ou BTG. Daí, além da melhor “visualização” da separação das reservas, é menos “automático” esse dinheiro ser utilizado, uma vez que é necessário entrar na plataforma da corretora e transferi-lo. Apenas mesmo em “emergências””
Abraço!
Excelentes dicas, André!
Complementa de forma magistral as dicas do post.
Felizmente, hoje, temos várias opções baratas para alocar a reserva de emergências.
Abraços!
Planejamento financeiro nunca é demais, Guilherme.
A vida ganha outras cores quando o dinheiro deixa de ser um problema e passa a fazer parte da solução.
Abraço!
Verdade, LL!
Abraços!
Vocês já viram isso?
Estava mesmo a precisar desta aula.
Obrigado
Valeu, Luís!